Uso de Esteroides Anabolizantes em Mulheres: Oxandrolona, Nandrolona e Trembolona Sob a Lupa da Ciência
- henriquedagger
- 29 de set.
- 7 min de leitura
A Busca Pelo Corpo Ideal e os Riscos Ocultos
O uso de Esteroides Anabólicos Androgênicos (EAA) por mulheres tem crescido progressivamente, motivado principalmente pela busca de resultados estéticos e de performance na musculação (CUNHA et al., 2004). Nesse contexto, surgem discussões em ambientes não clínicos sobre quais substâncias seriam mais "adequadas" ou "seguras" para o público feminino.
Este artigo tem como objetivo realizar uma análise científica de três EAA populares: Oxandrolona, Decanoato de Nandrolona e Trembolona. Avaliaremos criticamente a alegação de que a nandrolona e a trembolona seriam opções "melhores" ou "mais seguras" para mulheres. A análise será fundamentada exclusivamente em dados da literatura científica, contrastando com as informações anedóticas que frequentemente circulam entre praticantes de musculação.
O Mecanismo de Ação: Como os Esteroides Funcionam?
Os EAA são derivados sintéticos da testosterona e seu mecanismo de ação principal envolve a ligação ao receptor androgênico (AR), uma proteína presente no citoplasma das células (GRACELI et al., 2018; KICMAN, 2008). Uma vez ativado, esse complexo hormônio-receptor migra para o núcleo celular, onde se liga a sequências específicas do DNA, modulando a transcrição de genes e, consequentemente, aumentando a síntese de proteínas, o que leva à hipertrofia muscular.
Para compreender as diferenças entre os EAA e seus efeitos colaterais, é crucial conhecer duas vias metabólicas que alteram a ação da testosterona:
A enzima 5α-redutase: Esta enzima converte a testosterona em diidrotestosterona (DHT), um andrógeno consideravelmente mais potente. O DHT é o principal responsável por muitos dos efeitos virilizantes (masculinizantes) observados com o uso de EAA, como o crescimento de pelos e o agravamento da calvície de padrão masculino (KICMAN, 2008; RANDALL, 2004).
A enzima Aromatase: Esta enzima converte andrógenos em estrogênios, como o estradiol. Em homens, essa conversão pode levar à ginecomastia (crescimento das mamas). Nas mulheres, a interação com essa via pode desregular ainda mais um ambiente hormonal já complexo (KICMAN, 2008; CUNHA et al., 2004).
Testosterona e receptor androgenico
Análise Detalhada: Oxandrolona, Nandrolona e Trembolona
Oxandrolona: A Fama de "Suave"
A Oxandrolona é um derivado do DHT classificado como um esteroide 17α-alquilado, modificação que a torna ativa por via oral, mas que também aumenta seu potencial de toxicidade hepática (DUTRA, 2015; FRAGKAKI et al., 2009). Sua estrutura química é única, possuindo um átomo de oxigênio no lugar do carbono na posição C-2, o que a torna mais resistente à biotransformação no fígado em comparação a outros esteroides orais (ORR; FIATARONE SINGH, 2004; FRAGKAKI et al., 2009).
Seus usos clínicos documentados incluem o tratamento de crianças com queimaduras graves, em doses de 0,1 mg/kg/dia, e em pacientes com síndrome de Turner, na dose de 0,05 mg/kg/dia, para auxiliar no crescimento (PRZKORA et al., 2007; FONTELE et al., 2011). É fundamental contrastar essas doses terapêuticas mínimas com as doses suprafisiológicas utilizadas para fins estéticos, que elevam exponencialmente os riscos. O principal risco associado ao seu uso é a hepatotoxicidade, uma característica comum aos derivados 17α-alquilados (DUTRA, 2015).
Decanoato de Nandrolona (Deca): O Clássico de Volume
A Nandrolona é um derivado da 19-nortestosterona. Estudos in silico (computacionais) a classificam como um dos mais potentes ligantes ao receptor androgênico, devido à sua alta afinidade de ligação (ABBAS, 2018). Diferente da Oxandrolona, a Nandrolona sofre aromatização, sendo convertida em estrogênio no organismo (URTADO, 2006).
Os efeitos colaterais específicos documentados na literatura científica incluem:
Neurológicos: Pesquisas em ratos demonstraram que o decanoato de nandrolona reduz a atividade da enzima monoamina oxidase A (MAO-A) no cérebro. A MAO-A é responsável por metabolizar neurotransmissores chave como a serotonina e a dopamina; sua inibição leva ao acúmulo desses neurotransmissores, um desequilíbrio neuroquímico que está diretamente ligado a alterações de humor (BIRGNER et al., 2008).
Cardiovasculares: Um estudo que administrou a substância cronicamente em ratos observou o desenvolvimento de bradicardia de repouso (diminuição da frequência cardíaca) nos animais tratados (GRACELI et al., 2018).
Trembolona: A Potência e a Neurotoxicidade
A Trembolona, assim como a Nandrolona, é um potente derivado da 19-nortestosterona com alta afinidade pelo receptor androgênico (ABBAS, 2018). Lembre-se que, como explicado anteriormente, as enzimas 5α-redutase e aromatase são as principais responsáveis por efeitos colaterais virilizantes e estrogênicos da testosterona. A característica única da Trembolona é sua incapacidade de interagir com ambas as vias, ou seja, ela não se converte em DHT nem em estrogênio no corpo (YARROW et al., 2010; FUCUI; LIU, 2015). As doses relatadas em pesquisas com usuários são extremamente elevadas e perigosas, chegando a 700 mg por semana, um valor muito além de qualquer aplicação terapêutica (FUCUI; LIU, 2015).
Apesar de não apresentar os efeitos colaterais clássicos ligados ao DHT e ao estrogênio, a literatura científica aponta para graves riscos neurológicos:
Um estudo demonstrou que a 17β-trembolona atravessa a barreira placentária e acumula-se no cérebro de ratos, especialmente no hipocampo, uma área crucial para a memória e o aprendizado (FUCUI; LIU, 2015).
In vitro, a substância induziu apoptose (morte celular programada) de neurônios do hipocampo e demonstrou resistir à função neuroprotetora da testosterona (FUCUI; LIU, 2015).
De forma alarmante, a mesma pesquisa descobriu que a trembolona alterou o acúmulo da proteína Aβ42, um peptídeo cujo acúmulo está diretamente associado à neurodegeneração e ao desenvolvimento da Doença de Alzheimer (FUCUI; LIU, 2015).
Crucialmente, os efeitos neurotóxicos da trembolona são mediados pela ativação tanto dos receptores androgênicos (AR) quanto dos estrogênicos (ER), apesar de a molécula não se converter em estrogênio, o que demonstra seu mecanismo de ação complexo e perigoso (FUCUI; LIU, 2015).
O Mito Desvendado: Nandrolona e Trembolona são Realmente Melhores Opções para Mulheres?
A Lógica por Trás da Alegação: O argumento frequentemente utilizado para justificar o uso de nandrolona e, principalmente, trembolona por mulheres baseia-se em sua alta potência anabólica e no perfil teórico de efeitos colaterais. A trembolona, por não sofrer conversão em DHT ou estrogênio, é promovida como uma alternativa que evitaria efeitos virilizantes severos, acne e retenção de líquidos (YARROW et al., 2010; FUCUI; LIU, 2015).
A Realidade Científica: As evidências apresentadas nos estudos contradizem essa lógica de segurança. A escolha não é entre mais ou menos virilização, mas sim uma troca perigosa: substituir efeitos colaterais androgênicos bem documentados por danos sistêmicos mal compreendidos e potencialmente irreversíveis. Evitar efeitos estéticos clássicos usando trembolona ou nandrolona é o equivalente a desviar-se de uma queimadura solar caminhando em direção a uma avalanche. A neurotoxicidade documentada da trembolona, com indução de morte de neurônios e acúmulo de marcadores da Doença de Alzheimer, representa um perigo de magnitude muito superior aos efeitos colaterais estéticos (FUCUI; LIU, 2015). Da mesma forma, os riscos de alterações de humor e danos cardiovasculares associados à nandrolona não podem ser ignorados (BIRGNER et al., 2008; GRACELI et al., 2018).
Portanto, com base na literatura científica disponível, a alegação de que nandrolona e trembolona são opções "melhores" ou "mais seguras" para mulheres é cientificamente infundada e perigosa.
Efeitos Colaterais Gerais e Riscos à Saúde Feminina
Além dos riscos específicos de cada substância, o uso de EAA por mulheres está associado a uma série de efeitos colaterais de masculinização (virilização), muitos dos quais podem ser irreversíveis (CUNHA et al., 2004; CHANDLER; BROWN, 2006):
Engrossamento da voz
Crescimento de pelos em padrão masculino (hirsutismo)
Irregularidade ou ausência de menstruação
Aumento (hipertrofia) do clitóris
Calvície de padrão masculino
Redução do tamanho dos seios
Adicionalmente, existem riscos sistêmicos graves, comuns a ambos os sexos, que afetam múltiplos órgãos:
Área Afetada | Risco Associado |
Saúde Cardiovascular | Alteração do perfil lipídico (aumento do LDL, diminuição do HDL) e potencial para hipertrofia ventricular esquerda (CUNHA et al., 2004; KICMAN, 2008). |
Saúde Hepática | Risco de colestase (redução ou interrupção do fluxo biliar), peliose hepática (cistos cheios de sangue no fígado) e tumores, especialmente com derivados 17α-alquilados como a Oxandrolona (DUTRA, 2015; KICMAN, 2008). |
Saúde Psiquiátrica | Alterações de humor, irritabilidade, agressividade, ansiedade e depressão, especialmente durante a retirada (BARCELOUX, 2012). |
Sistema Reprodutor | Supressão da produção hormonal endógena (esteroidogênese gonadal) em ambos os sexos e atrofia testicular em homens (KICMAN, 2008). |
A análise da literatura científica revela que a ideia de um EAA "seguro" para mulheres é um mito perigoso. Cada composto carrega um perfil de risco único e significativo. A busca por alternativas à testosterona, como a nandrolona e a trembolona, na tentativa de evitar efeitos colaterais clássicos, pode expor a usuária a riscos ainda maiores e menos compreendidos, como a neurotoxicidade e danos cerebrais potencialmente irreversíveis.
É fundamental reforçar a mensagem de alerta sobre os perigos do uso indiscriminado e sem acompanhamento médico qualificado. Conforme a literatura sugere, os potenciais prejuízos à saúde, a curto e longo prazo, superam vastamente os eventuais ganhos estéticos (PIRES, 2022).
Referências
ABBAS, A.R. Avaliação in silico da afinidade da testosterona e seus derivados sintéticos ao receptor androgênico humano genótipo selvagem. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Farmácia-Bioquímica) – Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
BARCELOUX, D. G. Anabolic-Androgenic Steroids. In: BARCELOUX, D. G. (ed.). Medical Toxicology of Drug Abuse: Synthesized Chemicals and Psychoactive Plants. Hoboken: John Wiley & Sons, Inc., 2012. cap. 15, p. 275-293.
BIRGNER, C. et al. Reduced activity of monoamine oxidase in the rat brain after administration of nandrolone decanoate. Brain Research, v. 1219, p. 128-133, 2008.
CHANDLER, T. J.; BROWN, L. E. The side effects of anabolic-androgenic steroids. NSCA's Performance Training Journal, v. 5, n. 5, p. 16-18, 2006.
CUNHA, T. S. et al. Esteróides anabólicos androgênicos e sua relação com a prática desportiva. Revista Brasileira de Ciências Farmacêuticas, v. 40, n. 2, p. 165-179, 2004.
DUTRA, B.S. C. Esteróides anabolizantes: uma abordagem teórica. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso – Faculdade de Educação e Meio Ambiente, Ariquemes, 2015.
FONTELE, O. S. B. et al. Estatura final em síndrome de Turner. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, v. 55, n. 8, p. 553-560, 2011.
FRAGKAKI, A. G. et al. Structural characteristics of anabolic androgenic steroids contributing to binding to the androgen receptor and to their anabolic and androgenic activities. Applied modifications in the steroidal structure. Steroids, v. 74, n. 2, p. 172-197, 2009.
FUCUI, M.; LIU, D. 17β-trenbolone, an environmental hormone, contributes to neurodegeneration. Toxicology and Applied Pharmacology, v. 282, p. 68–76, 2015.
GRACELI, J. B. et al. Uso Crônico de Decanoato de Nandrolona e o Risco ao Coração. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, v. 24, n. 5, p. 397-401, 2018.
KICMAN, A. T. Pharmacology of anabolic steroids. British Journal of Pharmacology, v. 154, n. 3, p. 502-521, 2008.
ORR, R.; FIATARONE SINGH, M. The Anabolic Androgenic Steroid Oxandrolone in the Treatment of Wasting and Catabolic Disorders: Review of Efficacy and Safety. Drugs, v. 64, n. 7, p. 725-750, 2004.
PIRES, C. T. A. Efeitos do uso de acetato de trembolona: uma revisão de literatura. 2022. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Educação Física) – Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, 2022.
PRZKORA, R.; HERNDON, D. N.; SUMAN, O. E. The effects of oxandrolone and exercise on muscle mass and function in children with severe burns. Pediatrics, v. 119, n. 1, p. e109-e116, 2007.
RANDALL, V. A. Role of 5 alpha-reductase in health and disease. Baillière's Clinical Endocrinology and Metabolism, v. 8, n. 2, p. 405-471, 2004.
URTADO, C. B. Efeito do decanoato de nandrolona associado ao treinamento físico em ratas ovariectomizadas. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências Fisiológicas) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2006.
YARROW, J. F. et al. Tissue selectivity and potential clinical applications of trenbolone (17beta-hydroxyestra-4,9,11-trien-3-one): A potent anabolic steroid with reduced androgenic and estrogenic activity. Steroids, v. 75, n. 6, p. 377-389, 2010.