Inflamação no intestino e consumo de álcool
- Henrique Pereira
- 22 de mar.
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O consumo crônico e excessivo de álcool emerge como um fator de risco significativo para diversas patologias, que se estendem além do trato gastrointestinal (TGI) e do fígado. Uma crescente base de evidências científicas aponta para o papel central da inflamação intestinal induzida pelo álcool como um mecanismo subjacente a muitas dessas desordens. Este artigo de revisão detalha como a ingestão crônica de álcool desencadeia essa inflamação no intestino através de intrincadas interações com a microbiota intestinal, a permeabilidade da barreira intestinal e a imunidade da mucosa, culminando em efeitos deletérios locais e sistêmicos.

A Influência do Álcool na Microbiota Intestinal
O intestino humano abriga uma vasta e complexa comunidade de microrganismos, a microbiota intestinal, cuja homeostase é crucial para a saúde. O consumo crônico de álcool perturba esse equilíbrio, promovendo tanto a disbiose, um desequilíbrio entre bactérias benéficas e patogênicas, quanto o supercrescimento bacteriano, um aumento geral da carga bacteriana no intestino. Estudos demonstram que o álcool pode diminuir a abundância de bactérias consideradas benéficas, como Lactobacillus e Bifidobacterium, enquanto favorece o crescimento de bactérias pró-inflamatórias, como proteobactérias e bacilos. Essa alteração na composição microbiana leva a um aumento na produção e liberação de endotoxinas (lipopolissacarídeos - LPS) por bactérias gram-negativas
As endotoxinas, ao ativarem células imunes, deflagram uma cascata inflamatória. Adicionalmente, as bactérias intestinais podem metabolizar o álcool, gerando acetaldeído no cólon, um metabólito tóxico que exacerba a inflamação local. A disfunção na motilidade intestinal e alterações no metabolismo dos ácidos biliares, ambos associados ao consumo de álcool, também podem contribuir para o supercrescimento bacteriano.
Ruptura da Barreira Intestinal e Aumento da Permeabilidade
A barreira intestinal, composta por uma camada de muco, células epiteliais e suas junções intercelulares, desempenha um papel vital na proteção do organismo contra a entrada de substâncias nocivas presentes no lúmen intestinal. O consumo crônico de álcool compromete a integridade dessa barreira, induzindo hiperpermeabilidade intestinal, popularmente conhecida como "intestino permeável". Essa permeabilidade aumentada permite a translocação de bactérias, endotoxinas e outros antígenos para a corrente sanguínea, desencadeando inflamação sistêmica e contribuindo para o dano em outros órgãos.

Além disso, o álcool suprime a ação das células de Paneth — componentes importantes da imunidade intestinal que secretam compostos antibacterianos. Com a supressão dessas células, há uma redução na produção dessas substâncias, o que favorece o crescimento excessivo de bactérias intestinais e a entrada de seus subprodutos (como endotoxinas) na corrente sanguínea.
Essas endotoxinas ativam o sistema imunológico intestinal, promovendo a liberação de citocinas pró-inflamatórias. Ao alcançarem o fígado, essas substâncias interagem com os hepatócitos e células imunológicas hepáticas, gerando mais citocinas, que contribuem para a fibrose e inflamação local. A inflamação intestinal também permite que endotoxinas e citocinas entrem na corrente sanguínea e alcancem o sistema nervoso central, provocando neuroinflamação.
O álcool induz a hiperpermeabilidade por meio de mecanismos transepiteliais, causando dano direto e morte às células epiteliais, e paracelulares, afetando as junções apertadas que conectam as células adjacentes. O acetaldeído, um dos principais metabólitos do álcool, desestabiliza as junções apertadas. Além disso, o álcool e seus metabólitos alteram a expressão de proteínas constituintes dessas junções e desorganizam o citoesqueleto celular, comprometendo a função de barreira. A superexpressão de certos microRNAs (miRNAs) induzida pelo álcool também contribui para a perda da integridade da barreira intestinal.
Modulação da Imunidade da Mucosa pelo Álcool
A inflamação intestinal resultante do consumo crônico de álcool é mediada por uma resposta imune desregulada na mucosa intestinal. Inicialmente, o álcool pode suprimir a resposta imune inata local, tornando o intestino mais suscetível a infecções por patógenos. Subsequentemente, ele pode desencadear uma resposta imune pró-inflamatória, com a liberação de células inflamatórias como leucócitos e mastócitos, além de citocinas inflamatórias.
A translocação de endotoxinas, facilitada pela disbiose e pela hiperpermeabilidade intestinal, ativa células imunes na mucosa, intensificando a inflamação local e contribuindo para a inflamação sistêmica. O álcool também interfere diretamente na imunidade inata e adaptativa, inibindo a capacidade do intestino de eliminar bactérias perigosas e suprimindo a atividade das células imunes da mucosa. Outros mecanismos incluem a redução na secreção de moléculas antimicrobianas pelas células intestinais, a supressão da interleucina-22 (essencial para a integridade da mucosa) e a inibição de moléculas de sinalização e células T importantes para a resposta imune e a eliminação bacteriana.
Fatores Modificadores e Relevância Clínica
A susceptibilidade e a severidade da inflamação intestinal induzida pelo álcool podem ser moduladas por fatores como o ritmo circadiano e a dieta. A disrupção do ritmo circadiano, frequentemente observada em indivíduos com transtorno por uso de álcool, pode exacerbar a permeabilidade intestinal induzida pelo álcool. Estudos sugerem uma interação bidirecional, onde a disfunção circadiana promove a inflamação intestinal e o álcool, por sua vez, desregula o ritmo circadiano.
A dieta também desempenha um papel crucial na modulação dos efeitos do álcool no intestino. Estudos sobre dietas ricas em gordura apresentam resultados conflitantes, com evidências de que o tipo de gordura (saturada vs. insaturada) pode influenciar a permeabilidade intestinal. A suplementação com certos tipos de gordura saturada, como tributirina e ácidos graxos saturados de cadeia longa (SLCFAs), demonstrou proteger contra a disfunção da barreira intestinal em modelos animais. Por outro lado, dietas ricas em gordura insaturada podem exacerbar os efeitos nocivos do álcool.
A aveia, rica em fibras, vitaminas e minerais, tem mostrado potencial para atenuar os efeitos deletérios do álcool no sistema digestivo, reduzindo os níveis de endotoxinas e a hiperpermeabilidade intestinal em estudos pré-clínicos. A deficiência de vitaminas e minerais, comum em indivíduos com transtorno por uso de álcool, como zinco e vitamina D, também pode contribuir para a disfunção intestinal, sugerindo que a suplementação pode ser benéfica.
A inflamação intestinal induzida pelo álcool está implicada na patogênese de diversas condições clínicas, tanto no TGI quanto em outros órgãos. No TGI, ela tem sido associada a um maior risco de cânceres gastrointestinais (esôfago, estômago e cólon) e pode influenciar o curso da doença inflamatória intestinal (DII). A inflamação intestinal também desempenha um papel fundamental no eixo intestino-fígado, contribuindo para o desenvolvimento e progressão da doença hepática alcoólica. O aumento da permeabilidade intestinal permite a translocação de endotoxinas para o fígado através da veia porta, ativando células imunes hepáticas e desencadeando inflamação, fibrose e dano hepatocelular.
Adicionalmente, o eixo intestino-cérebro tem ganhado destaque, com evidências sugerindo que a inflamação intestinal induzida pelo álcool e a translocação de LPS podem afetar a função psicológica e cognitiva, contribuindo para sintomas como depressão, ansiedade e desejos por álcool, além de influenciar a neuroinflamação e os sintomas de abstinência.
Conclusão
A inflamação intestinal induzida pelo consumo crônico de álcool emerge como um fator patogênico central em uma ampla gama de desordens relacionadas ao álcool. Os mecanismos envolvidos incluem a disrupção da microbiota intestinal, o aumento da permeabilidade da barreira intestinal e a desregulação da imunidade da mucosa. A compreensão desses intrincados processos é crucial para o desenvolvimento de estratégias terapêuticas mais eficazes na prevenção e no tratamento de condições associadas ao alcoolismo crônico. A modulação da dieta e da flora intestinal representam abordagens promissoras para mitigar os riscos associados ao consumo excessivo de álcool, embora ensaios clínicos controlados sejam necessários para validar o uso da suplementação dietética e de micronutrientes.
Referências
BISHEHSARI, F.; MAGNO, E.; SWANSON, G.; DESAI, V.; VOIGT, R. M.; FORSYTH, C. B.; KESHAVARZIAN, A. Alcohol and Gut-Derived Inflammation. Alcohol Research: Current Reviews, v. 38, n. 2, p. 157-171, 2017.
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